História de trens

"São tão claros os presságios e os encontros dessa vida
Quando as partes combinadas surgem numa mesma estrada..."
de Pequenina, cantada por Xangai (Renato Teixeira)

Os trens se cruzaram e pararam antes de chegar a plataforma. Isto acontece frequentemente. Passageiros de um e outro aproveitam estes momentos para se olharem, se avaliarem, através das janelas de guilhotina.

O casal se reconheceu naquele dia. Já haviam se visto outras vezes, cada um a seu modo atraído pela figura do outro. O soldadinho bem apanhado, no rosto um quê de quem vive de bem com a vida. A moça séria, jeitosa, muito bem arrumada, nos saltos - embora na volta do trabalho ela já esteja se achando meio decomposta. Ele lhe disse, mais tarde, que a achara bonita, e ela, no fundo, no fundo, acredita, com um tiquinho de modéstia. Sempre fora cuidadosa com a aparencia, copiando os modelos das moças mais elegantes de sua época, estampadas nas revistas que um tio vez por outra lhe compra: Cruzeiro, Manchete, a Revista do Rádio. Olha atenta as fotos Angela Maria, Emilinha, as capas das partituras onde modelos exibem seus vestidos de baile, ombros nus enfeitados com camélias e colares de pérolas.

Ainda naqueles minutos de espera entre estações, os dois trocam sinais combinando o provável encontro. Ele olha o relógio calculando o horário do trem em que ela está. Até hoje essa regularidade é usada por casais. Nicinha está vindo do centro da cidade, onde trabalha numa fábrica de sapatinhos para bebê. Ele, do quartel, algumas estações acima. No dia seguinte, já estava na plataforma quando o trem dela chega. Caminharam juntos até o bonde em que ela vai para casa. Depois até o ponto onde ela salta e, depois, até sua casa. Um irmão é escalado para não perdê-los de vista no trajeto. Finalmente Chiquinho pede permissão para namorá-la ao pai severo. Passam a se ver todas as quartas e sábados. A mãe da moça constantemente o interroga sobre suas intenções. Todas muitos boas, pensa e responde o rapaz. O próximo passo para o compromisso, é conhecer a família dele. Mais uma vez é o trem que os leva até lá. Nicinha costura um belo vestido para o dia, colorido, listrado em verde, azul-marinho, amarelo; bem franzido, gola canoa e mangas japonesas. Prende o cabelo num rabo-de-cavalo e usa saltos altíssimos. Fêz muito sucesso quando apresentada aos pais dele. A futura sogra lhe conta histórias do seu menino, o quanto ela penou para sustentar a ambos quando seu marido foi embora, até casar novamente e de como o padrasto o ama, como a um filho. Falou do tempo em que seu menino sofria tocando boiada, dias, semanas, longe de casa, comendo o que dava, bebendo água de chuva. Contou da determinação dele em melhorar de vida, em sair dali e ir pra cidade grande. Como sofreu quando o rapaz foi mesmo embora, imaginando se ele tinha onde dormir, se sentia frio. Aqueles primeiros dias longe de casa, o rapaz dormiu foi em banco de praça mesmo, até que localizasse os padrinhos que o acolheram e ajudaram a arranjar emprego. Mas olha só pra ele agora, fardado, orgulhoso da carreira. Gostaram-se muito, logo de início, sogra e futura nora. E esta vai pra cozinha fazer uma bela duma galinha pro almoço.

Enquanto isso, pai e filho têm uma conversa num canto e o pai lhe assegura que não vai permitir que trate esta moça como às outras que namorou. Será que ele percebeu que esta não é como as outras? Que ele tome tenência, crie juízo. Claro que o rapaz já decidiu que esta é pra casar e é o que ele vai fazer: se assentar, parar de pular de galho em galho, de se engraçar com moças comprometidas, a ponto de ter que brigar de faca, de chegar em casa com a camisa em farrapos após cair no meio de espinheira, fugindo de brigas com namorados (e até maridos) traídos; já estava cansado da vida de andar armado para o que desse e viesse. Ele tem que sossegar. É o mais prudente a fazer.

O casamento aconteceu no mês das noivas, maio. No civil ela foi de vestido lilás-rosa, combinando com solidéu preto de véu e peninhas da mesma cor do vestido. No religioso, cetim prata com botões encapados no vestido de talhe princesa, uma cauda que chegava quase até a porta da igreja quando já estavam no altar. O buquê que levava era de copos-de-leite naturais e o bolo tinha o tradicional casal de noivos no último dos três andares.

O trem continuou a fazer parte da história deles, nas visitas à família, no dia em que levaram o bebê para os avós conhecerem.

Ainda hoje, de manhã bem cedo, quando o vento é propício, escuto a melodia do ritmo do trem saindo e chegando na estação.

Trens se cruzam trazendo gente que se reconhece e que decide seguir juntos a viagem da vida.

2 comentários:

  1. Ah, eu a-do-ro essa história.Fica fácil pra mim, por ter o prazer de conhecer de perto as personagens, visualizar tudo..os olhares, os sorrisos sedutores, o ambiente, já que viajei de trem muitos anos e, apreciar o ritmo cafe-com-pão de sua narrativa...parabéns!!!

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  2. Obrigada, Marcinha. Sim, é uma história de certo modo até comum. Quantos casais não se conheceram assim, né mesmo? Algum estatístico ou desses órgãos de pesquisa podiam fazer um longo estudo sobre o tema. Meus pais contribuiriam com a parte deles... rs

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