Comecei a envelhecer quando um certo movimento que me deixava com expressão tão abobalhada no rosto, deixou de me interessar. Afinal que inveja posso ter de quem consegue levar o próprio dedão do pé direito até a boca? Nessa mesma época, deixei de girar o dedo dentro de cada narina e depois levá-lo à boca, porque descobri outras formas bem mais interessantes e protéicas do que minhas próprias melecas. Perdi o interesse também por pão com açúcar e manteiga, dulcíssima iguaria que embalava minhas tardes. Nem mesmo liguei ao perceber que não me transformaria em Jeannie, a gênia, desparecendo, apenas com um aceno de cabeça, com as tarefas domésticas e repetitivas. Também não me aborreci, só estranhei um pouco, alguns anos mais tarde, quando um bando de aborrescentes chamou-me de tia ao pedir uma informação, por favor. Reagi com dignidade até mesmo quando numa dessas vezes quem me chamou assim tinha, no mínimo, uns 10 anos a mais que eu. Noutro dia ouvi, à minha passagem: "Hummm, a tia aí ainda dá um bom caldo". Preferi pensar que fosse com a mulher ao meu lado. Na sequência, os vendedores começaram a me tratar por senhora. "A senhora deseja algo? Posso ajudar, senhora? Assine aqui, senhora, por favor." Fui me acostumando a me entrincheirar atrás dos comentários comparativos que bondosos amigos vez em quando faziam: "Ih! nem se compara, você dá de 1000 na fulana..." "Sério? já fez 50? Nem parece..." E, quando fui avisada por um deles, muito bem intencionado, aliás, de que havia cabelos brancos na parte de trás de minha cabeça, nem liguei; comprei minhas tinturas e, hoje, já nem sei mais que tom tem a cor original de meus cabelos. Mas e daí? De que me serviria saber? Mas, dias desses, finalmente perdi todas as esperanças de vencer a guerra. Me dei conta de que pouco a pouco venho perdendo batalha por batalha, cada uma das trincheiras caiu em mãos inimigas. As tinturas, os cremes para dia, para noite, as massagens, os elogios (que agora me soam educadamente piedosos), os truques de maquiagem, nada teve valia, porque o inimigo é aquele que mais feroz fica quanto mais eu corro dele. Finalmente caí do salto, capitulei, entreguei o ouro ao bandido, quando o primeiro fio de cabelo branco surgiu na sobrancelha.
Ah! Péraí. Aturei tudo, tudo. Não podiam me deixar ao menos isso?
A data que o aço grava na lápide e que os livros paroquiais registram é posterior a nossa morte; já estamos mortos quando nada nos toca, nem uma palavra, nem um desejo, nem uma memória. Eu sei que não estou morto.
Poema “O palácio” de Jorge Luis Borges
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Liege Lopes disse:
"E pensar que há uns trinta e tantos anos eu acompanho essa guerra..."
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