Jiboiar

A mulher se senta, à tardinha, num toco da árvore velha que precisou ser podada, como num banco improvisado, jiboiando, sentindo o calor do sol e o seu cheiro - sim, afirma que do sol emana um perfume que se existisse engarrafado, e se o preço fosse acessível, gostaria de usar. É do tipo que pensa em preços acessíves, sonhos e amores possíveis. Não se lembra muito dos sonhos noturnos. Só dos muito marcantes, como aqueles que sonhava na época em que fazia análise. É de olhos bem abertos que gosta de fazer planos. Roteiros de viagem, principalmente. Um dia pensa em conhecer Portugal e Espanha, seus castelos e os resquícios da passagem árabe por ali, catedrais européias, a cidade de Londres, os campos escoceses. Lugares citados em livros, em músicas. Planos guardados a sete chaves.
Já passou por muitas experiências, mas continua trazendo os olhos vivos, brilhantes, de quem se surpreende sempre com novas descobertas feitas seja em pessoas, livros, atlas; ou com gatos brincando de esconde-esconde, lagartos imóveis nos muros quentes, imagens do deserto da Austrália e do povo turco na época em que habitavam subterraneos.
Mas naquele momento só quer receber o calor do sol, sem pensar em nada. Nem planos, nem compromissos.
Os dois cachorros correm pra receber seus carinhos, sabendo que sempre são bem recebidos quando ela aparece naquela parte do quintal. O mais forte deles traz um pedaço de pano que vem carregando no focinho, serelepe, gingando e abanando o rabo, querendo brincar de cabo de força. São cães felizes.
Finalmente ela se levanta, já satisfeita com a reserva de calor que armazenou no corpo, na pele agora morna onde o sol se banhou. Felizes, ela e o sol, em cumprir seus papéis na engrenagem.


Aos trinta anos Zaratustra afastou-se da sua pátria e do lago da sua pátria, e dirigiu-se à montanha. Durante dez anos gozou por lá do seu espírito e da sua solidão sem se cansar. Variaram, no entanto, os seus sentimentos, e uma manhã, erguendo-se com a aurora, pôs-se em frente do sol e falou-lhe da seguinte maneira: "Grande astro! Que seria da tua felicidade se te faltassem aqueles a quem iluminas? Faz dez anos que te apresentas à minha caverna, e, sem mim, sem a minha águia e a minha serpente, haver-te-ias cansado da tua luz e deste caminho. Nós, porém, te aguardávamos todas as manhãs, tomávamos-te o supérfluo e bendizíamos-te. Pois bem, já estou tão enfastiado da minha sabedoria, como a abelha quando acumula demasiado mel. Necessito mãos que se estendam para mim. Quisera dar e repartir até que os sábios tornassem a gozar da sua loucura e os pobres, da sua riqueza. Por essa razão devo descer às profundidades, como tu pela noite, astro exuberante de riqueza quando transpôs o mar para levar a tua luz ao mundo inferior. Eu devo descer, como tu, segundo dizem os homens a quem me quero dirigir. Abençoa-me, pois, olho afável, que podes ver sem inveja até uma felicidade demasiado grande! Abençoa a taça que quer transbordar; para que dela jorrem as douradas águas, levando a todos os lábios o reflexo da tua alegria! Olha! Esta taça quer novamente esvaziar-se, e Zaratustra quer tornar a ser homem". Assim principiou o ocaso de Zaratustra.


________________________

Ricardo Duarte disse:
"Que lindo, Nilva!
Essa integração com a natureza anda ficando cada vez mais esquecida, em meio a outras engrenagens. Temos muito a aprender com o cacto do Manuel Bandeira:

Um dia um tufão furibundo abateu-o pela raiz.
O cacto tombou atravessado na rua,
Quebrou os beirais do casario fronteiro,
Impediu o trânsito de bondes, automóveis, carroças,
Arrebentou os cabos elétricos e durante vinte e quatro horas privou a cidade de iluminação e energia:

- Era belo, áspero, intratável.
Beijos"

Nenhum comentário:

Postar um comentário