Uma mulher dos anos 20

Não é de hoje que fico assombrada com mulheres decididas a sofrer o menos possível; que não se submetem a leis patriarcais inúteis e/ou insanas; que se valem de brechas (elas existem, sempre existiram) nessas mesmas leis; mulheres que pagam por suas escolhas um preço nem sempre justo, e que, apesar de, ou por tudo isso, enfim se tornam vitoriosas, felizes, e encontram razão de se orgulharem de serem o que são.

Escrevo para falar de mulheres como minha bisavó, Sá Augusta Moreira, que ao ficar viúva, teve seus filhos retirados de sua companhia porque algum homem determinara que viúvas não tinham o direito de ficar com eles e nem meios de sustentá-los. O único filho que seu irmão, o Juca, permitiu que ficasse com ela, havia nascido há doze dias quando o marido, Julião Moreira, morreu. Sá Augusta ficou sozinha na casa com o bebê porque o estava amamentando.

Ela esperou.

Informou-se na polícia de que se se casasse de novo, poderia retomar os filhos. E foi o que fez. Havia recusado um pretendente até ali, mas decidiu que pagaria o preço de um novo casamento para ter seus filhos novamente perto de si. No dia seguinte ao casamento com Joaquim Gomes — o viúvo que era pai do meu avô materno, que à época teria uns 15 anos —, foi à delegacia. E depois, de fazenda em fazenda, resgatando seus filhos com o bisavô Julião: Jovana, minha avó materna, e os tios Cecília e Manoel.

De onde retirava forças para planejar suas ações?
Que pensamentos fervilhavam na cabeça daquela mulher?
E que mulher! Quanta garra, coragem, amor, inteligência, perspicácia.

Já idosa, adoentada, ainda veio ao Rio de Janeiro procurar outro dos filhos que tivera com Joaquim Gomes, o tio Marcelino que emigrara de Miracema e aqui no Rio, sumira, ninguém sabendo dele. Sá Augusta andou pelas ruas, nos bondes, perguntando, tentando descobrir pistas desse filho. Era o que ela podia fazer. Infelizmente morreu sem ter notícias dele.

Ah, se ela tivesse vivido no tempo em que podemos sobreviver do nosso próprio trabalho, em que temos acesso a informações que nos libertam de todo tipo de opressão, este tempo em que nos beneficiamos de cada mudança ocorrida!

Ah, se ela pudesse saber quão pioneira foi, intuitivamente, usando as armas de que dispunha, muito antes do dito movimento feminista!

E se ela pudesse saber que Miracema parou, quando de sua morte, porque Sá Augusta espalhou em torno de si o mesmo amor que tivera aos filhos, o amor que a fez encontrar os meios para contornar os obstáculos que a vida lhe impusera. E todos os felizardos que frequentaram sua casa por todos aqueles anos — uma casa que nunca ficava vazia —, todos os que beberam de seu bom humor, de seu otimismo, de sua alegria em viver, pararam para acompanhar aquela mulher forte e bonita pela última vez.

________________________

Irinéa Maria disse:
"Fantástica historia! Ser mulher, negra, em 1920, foi o grande desafio pra essa guerreira.
Fico feliz em conhecer a descendente de Sá Augusta."
bj.

Nenhum comentário:

Postar um comentário