Livro e Filme: O Perfume



O drama de um dos personagens mais marcantes dentre todos que já li, Jean-Baptiste Grenouille, à procura de seu próprio cheiro. Assim eu poderia resumir a história criada por Patrick Susskind. Grenouille percebe ser dotado de um dom ambíguo: ele cheira, distingue e até mesmo compõe os mais diversos perfumes, enquanto que, ele mesmo, não tem nenhum cheiro, e por isto ninguém o percebe, ninguém o nota. Decide então querer o mais puro aroma que julga existir porque pensa que só deste modo será amado. Para realizar este intento, praticará o que considerar necessário.
Um dom maravilhoso lhe foi dado, lhe é involuntário. Mas o que Grenouille faz com o dom é sua escolha.
E ele escolhe associar o belo ao asqueiroso, o sagrado ao horror. Decide tomar um dos cinco sentidos, aquele que é considerado tanto primitivo quanto criador de uma das mais belas artes humanas — o olfato  —, e levá-lo a um nível dos mais inferiores, dos mais desgraçados. Grenouille associa o perfume francês; o aroma do corpo de bebês; o cheiro da carne assando na casa de algum vizinho; o odor de roupas que se tira dos varais expostos ao sol; o que evola de buquês de rosas, jasmins e cravos ao fedor das feiras de peixe, de bocas podres, de cadáveres, de rios de esgoto.
Enquanto leio, fico dividida entre o horror e a piedade.
Grenouille é um ser humano que passa desapercebido, que não exala nenhum perfume (o quanto isto é emblemático), a quem nada atinge etica, moral ou espiritualmente, que não se detém enquanto não atinge seus objetivos, o que é de um simbolismo dos mais atuais.
Sem pregar nenhuma espécie de moral, o autor deste personagem nos atinge na cara com a visão das mais pessimistas da sociedade contemporânea.
Livro belamente escrito por Patrick Susskind, criador de um personagem composto de modo a que o leitor tenha a sensação de que Jean-Baptiste Grenouille poderia viver aqui ao lado. Ai, que medo!

O namorado ou a fita-cassete

“A música pode fazer pela alma o que nenhuma
atividade perceptível aos sentidos pode realizar.”(El Morya)

Posso afirmar que faz.




A música que me fêz sintonizar com algo superior e profundo dentro de mim mesma ou em outras esferas ou em ambos os lugares, foi Golden Slumbers dos Beatles.

Como eu os amei! Por tudo que simbolizaram no período mais crítico em minha vida. Como se ao econtrá-los me fosse entregue a parte que me faltava, como se eu descobrisse que não estava só, que havia harmonia no universo e eu comungava com ela. A adolescente triste, desesperançada, ensimesmada, desconfiada que fui, vivia para, aos sábados, ouvir por uma hora inteira, na Mundial AM, o Cavern Club que o grande e louco Big Boy iniciava com o brado: “Hello, crazy people.”

Naqueles míseros 60 minutos me sentia sintonizada com a música feita para a minha alma. Para eternizá-los realizava um ritual ao fechar porta e janela do quarto, posicionar o gravador - cujos microfones externos captavam também a passarada nas árvores próximas, atraída pela harmonia dos rapazes de Liverpool - e registrar, silenciosa, aquelas preciosidades em fitas-cassete que eram o meu tesouro, guardiãs e altares. No meu lugar secreto fazia uma oferenda a uma divindade que me era propícia pois me supria do alimento que me nutria e transmutava.

Beatles: um encontro, uma escolha.

Antes eu apenas flutuava satisfazendo pais, família, sem convicções do meu próprio domínio sobre gostos, duvidando até mesmo sobre o instrumento que tocava - por imitação? era verdadeiro o meu gostar do acordeão?

Dos Beatles eu tive uma necessidade visceral que me impulsionava a gestos de afirmação, a enfrentamentos, a dissimulações, a preterir o namorado se ele se adiantasse e o Cavern Club ainda não tivesse terminado... Agora, pensando melhor, será que o que aquele namorado fez foi por ciúme de George, Paul, John, Ringo?

Minha primeira grande tragédia se deu quando o namorado me devolveu as mesmas fitas-cassete apagadas, conspurcadas por outra música. Não entendi jamais o que o levou a fazer aquilo que tanto me magoaria.

Trago ainda o gosto azedo do remorso, da saudade daqueles registros tão reveladores e peculiares que seriam de inestimável valor hoje. Ainda hoje ouço Golden Slumbers e canto e rejo minha orquestra imaginária com a mesma emoção da primeira vez.

O mais curioso é que o ex-namorado esqueceu este fato que marcou tão profundamente minha vida.

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Ricardo Duarte disse...
"Nilva, eu também gosto muito de Golden Slumbers. Conhece a versão da Elis?
Achei esse post emocionante, especialmente quando você diz que ouvir os Beatles era como a entrega da parte que te faltava e a descoberta de que não estava só. Lindo!
Beijos."

A filha do Basilio


O homem importante mais que todos os outros para minha vida, inclusive sem o qual nem mesmo teria vindo a este planetinha. Meu pai. Decisivo desde o momento de minha `estreia`. Mamãe por medo de morrer no hospital, longe da família, decidiu me parir em casa mesmo com uma parteira já idosa. As complicações da eclâmpsia fizeram com que ela e eu sofrêssemos mais de 24 horas. Eu cheguei a tentar aparecer mas voltei pra dentro correndo, porque com certeza o que vi do lado de fora não era o paraíso! A parteira desesperou-se, não tinha mais forças para nos ajudar e foi então que meu heroico pai usou sua força física para este ato. Logo a seguir, comigo nos braços, chorando ainda, pelas emoções imensas que passara, me levou para meu primeiro passeio com ele. Ia me mostrando as melhorias na casa, o bercinho, a cadeirinha da bicicleta onde me levaria de carona, e enquanto me apresentava ao mundo, contava que cada uma daquelas coisas ele tinha feito para mim... Anos depois, quando li Negras Raízes e Kunta Kinté também é apresentado ao mundo pelo pai dessa mesma maneira, me emocionei muito. Meu pai era assim, sensível e másculo. Um grande cozinheiro, um eletricista perfeccionista, um militar orgulhoso, um marido gentleman, um pai chorão até quando precisava me corrigir. Graças aos deuses só aumentou meu orgulho dele nas vezes que o vi escondido chorando por ter me dado uns tapas. Doía nele mais do que em mim. Da pobreza extrema de suas raízes, abandonado por um pai grosseiro e mau, caminhou garboso pelo mundo até sair dele como uma estrela que retorna à sua constelação.

"A man wants to work
for his pay
A man wants a place
in the sun
A man wants a gal
proud to say
That she'll become
his lovin' wife
He wants a chance to give
his kids a better life
Well hello brother,
hello, yeah"

Filme: Piaf, um hino ao amor e Frida (Kahlo)

Piaf, um hino ao amor, de 2007 e Frida (Kahlo), de 2002. Vidas intensas de mulheres idem. As duas superaram suas tragédias pessoais através da arte. Sofreram no corpo e na alma. Os quadros de Frida Kahlo e a voz pungente de Edith Piaf ultrapassam todas as barreiras que condição sexual, histórica ou atávica poderiam ter paralisado. São dois filmes biográficos, com atrizes - particularmente Marion Cotillard - que encarnam talentosamente suas personagens. E onde trilhas sonoras particularmente belas, pontuam momentos históricos e as vidas singulares destas mulheres que nos legaram arte autêntica, visceral, a pura expressão de seu sofrimento.



História de trens

"São tão claros os presságios e os encontros dessa vida
Quando as partes combinadas surgem numa mesma estrada..."
de Pequenina, cantada por Xangai (Renato Teixeira)

Os trens se cruzaram e pararam antes de chegar a plataforma. Isto acontece frequentemente. Passageiros de um e outro aproveitam estes momentos para se olharem, se avaliarem, através das janelas de guilhotina.

O casal se reconheceu naquele dia. Já haviam se visto outras vezes, cada um a seu modo atraído pela figura do outro. O soldadinho bem apanhado, no rosto um quê de quem vive de bem com a vida. A moça séria, jeitosa, muito bem arrumada, nos saltos - embora na volta do trabalho ela já esteja se achando meio decomposta. Ele lhe disse, mais tarde, que a achara bonita, e ela, no fundo, no fundo, acredita, com um tiquinho de modéstia. Sempre fora cuidadosa com a aparencia, copiando os modelos das moças mais elegantes de sua época, estampadas nas revistas que um tio vez por outra lhe compra: Cruzeiro, Manchete, a Revista do Rádio. Olha atenta as fotos Angela Maria, Emilinha, as capas das partituras onde modelos exibem seus vestidos de baile, ombros nus enfeitados com camélias e colares de pérolas.

Ainda naqueles minutos de espera entre estações, os dois trocam sinais combinando o provável encontro. Ele olha o relógio calculando o horário do trem em que ela está. Até hoje essa regularidade é usada por casais. Nicinha está vindo do centro da cidade, onde trabalha numa fábrica de sapatinhos para bebê. Ele, do quartel, algumas estações acima. No dia seguinte, já estava na plataforma quando o trem dela chega. Caminharam juntos até o bonde em que ela vai para casa. Depois até o ponto onde ela salta e, depois, até sua casa. Um irmão é escalado para não perdê-los de vista no trajeto. Finalmente Chiquinho pede permissão para namorá-la ao pai severo. Passam a se ver todas as quartas e sábados. A mãe da moça constantemente o interroga sobre suas intenções. Todas muitos boas, pensa e responde o rapaz. O próximo passo para o compromisso, é conhecer a família dele. Mais uma vez é o trem que os leva até lá. Nicinha costura um belo vestido para o dia, colorido, listrado em verde, azul-marinho, amarelo; bem franzido, gola canoa e mangas japonesas. Prende o cabelo num rabo-de-cavalo e usa saltos altíssimos. Fêz muito sucesso quando apresentada aos pais dele. A futura sogra lhe conta histórias do seu menino, o quanto ela penou para sustentar a ambos quando seu marido foi embora, até casar novamente e de como o padrasto o ama, como a um filho. Falou do tempo em que seu menino sofria tocando boiada, dias, semanas, longe de casa, comendo o que dava, bebendo água de chuva. Contou da determinação dele em melhorar de vida, em sair dali e ir pra cidade grande. Como sofreu quando o rapaz foi mesmo embora, imaginando se ele tinha onde dormir, se sentia frio. Aqueles primeiros dias longe de casa, o rapaz dormiu foi em banco de praça mesmo, até que localizasse os padrinhos que o acolheram e ajudaram a arranjar emprego. Mas olha só pra ele agora, fardado, orgulhoso da carreira. Gostaram-se muito, logo de início, sogra e futura nora. E esta vai pra cozinha fazer uma bela duma galinha pro almoço.

Enquanto isso, pai e filho têm uma conversa num canto e o pai lhe assegura que não vai permitir que trate esta moça como às outras que namorou. Será que ele percebeu que esta não é como as outras? Que ele tome tenência, crie juízo. Claro que o rapaz já decidiu que esta é pra casar e é o que ele vai fazer: se assentar, parar de pular de galho em galho, de se engraçar com moças comprometidas, a ponto de ter que brigar de faca, de chegar em casa com a camisa em farrapos após cair no meio de espinheira, fugindo de brigas com namorados (e até maridos) traídos; já estava cansado da vida de andar armado para o que desse e viesse. Ele tem que sossegar. É o mais prudente a fazer.

O casamento aconteceu no mês das noivas, maio. No civil ela foi de vestido lilás-rosa, combinando com solidéu preto de véu e peninhas da mesma cor do vestido. No religioso, cetim prata com botões encapados no vestido de talhe princesa, uma cauda que chegava quase até a porta da igreja quando já estavam no altar. O buquê que levava era de copos-de-leite naturais e o bolo tinha o tradicional casal de noivos no último dos três andares.

O trem continuou a fazer parte da história deles, nas visitas à família, no dia em que levaram o bebê para os avós conhecerem.

Ainda hoje, de manhã bem cedo, quando o vento é propício, escuto a melodia do ritmo do trem saindo e chegando na estação.

Trens se cruzam trazendo gente que se reconhece e que decide seguir juntos a viagem da vida.

Dona Jovana

Aquela avó pecava pelos excessos. Tudo nela eram cuidados excessivos, o próprio medo antecipado. Sofrera tanto na infância, separada da mãe e irmãos por conta desse machismo bárbaro que justifica ou camufla? sua maldade, ignorancia e frieza sob o véu da moralidade.
Porque naqueles tempos não ficava bem uma viúva morar só com seus filhos, sem homem na casa para ocupá-la, controlá-la; sozinha, o que ela acabaria por fazer? e o que diriam os vizinhos, os conhecidos?
A bisavó voltou, assim, ao abrigo ou jugo? do irmão mais velho. Mas nem só de moral alimenta-se um homem e sua irmã viúva mais seus filhos. Faz-se então o que era piedoso: cada filho enviado ao abrigo de um senhor fazendeiro que à menina nem mesmo deu o pão que o diabo amassou. Aquela avó comia na escada, longe da mesa da família, aquilo que sobeja e se dá generosamente a cães, porcos e meninas. Até seus cabelos longos a menina perdeu num ataque de higiene da distinta esposa do fazendeiro. Sofreu e chorou enquanto fazia todo tipo de trabalho, típico do sexo feminino, aquela menina.
As marcas de todo esse sofrer acrescentados aos outros mais que a vida lhe trouxe eram sua marca registrada. Que tesouro a foto em que gargalha!
Os netos ela trazia sob suas saias, a ponto de exagerar nos gritos de:

Onde você está menino? - tô aqui, vó.
Onde? - no banheiro.
Fazendo o queêê? - ...

ou

Sai da rua menino,
Não come cajá verde, vai fazer mal,
Sai do sol,
Não pisa descalço na terra,
Não corre assim.
Não! Não! Não!

Um dia os netos rebelaram-se e em fila saíram para a rua, tentando fugir para a casa de uma das tias, mais liberal, exclamando, um de cada vez e socando a mão esquerda com a direita:

A mais velha: - Eu não aguento essa avó!
A do meio: - eu também não guento.
O mais novinho: - eu num dêntu essa vó.



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Liege Lopes disse:
"A mais velha hoje diz: Que saudade dessa vó..."
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Ricardo Duarte disse:
"Que engraçado! Acho que todas as crianças já fizeram isso - maldizer algum adulto que lhes está chamando a atenção. Um tipo de raiva que com a mesma facilidade que vem, vai.
Linda foto - por ela, jamais perceberia a história que você contou. Moral... É por essas e outras que quando escuto "antigamente era melhor", sempre penso: 'Não se engane - nem melhor nem pior'."

Carpe Diem

"Na vida de um homem o seu tempo é apenas um momento,
o seu ser é um fluxo incessante,
o seu sentimento é uma luz fraca que passa de repente,
o seu corpo é presa para os vermes,
sua alma é um constante turbilhão,
a sua sorte é negra e a sua fama é duvidosa.
Em resumo, tudo que é do corpo é como a água corrente
e tudo que é da alma são sonhos e devaneios."

(Imperador Marco Antonio)


Filme: Apocalypto



Apocalypto (um novo começo) de Mel Gibson é violento do princípio ao fim, explícita na caça dos maias ao javali até a violenta chegada dos espanhóis. Mas enquanto torcia por Jaguar Paw, o protagonista, não por sê-lo, mas porque também eu queria que ele escapasse e conseguisse libertar sua esposa do poço etc... nada vi que já não tenha visto ou sabido. O filme não é mais violento que o dia-a-dia de tantas 'comunidades' brasileiras ou tantas tribos africanas.

Apesar de ser a marca da direção em A paixão de Cristo ou Coração Valente, a violência não me desviou do que intuí ser a verdadeira intenção do filme: mostrar a luta de um homem sozinho contra tantos opressores, tantos rituais, tantas perdas, tanto sangue, para conseguir voltar para o seu amor, sua família. Uma ode à resistência do homem comum.

Aliás, como tantas vezes vimos - e tantas vezes ainda veremos -, o pacato e honesto cidadão, apesar de tudo e todos, vivendo apenas por e para isso: seu amor, sua família, seu cotidiano 'banal', enquanto a História vai sendo tecida em maledicência, traição, demagogia, manipulação, enganação, jogo sujo, guerra, sangue, morte. Contrastando com a esperança, com o sonho que o homem tem de simplesmente ser deixado vivo, para viver a sua vida.

A última trincheira

Comecei a envelhecer quando um certo movimento que me deixava com expressão tão abobalhada no rosto, deixou de me interessar. Afinal que inveja posso ter de quem consegue levar o próprio dedão do pé direito até a boca? Nessa mesma época, deixei de girar o dedo dentro de cada narina e depois levá-lo à boca, porque descobri outras formas bem mais interessantes e protéicas do que minhas próprias melecas. Perdi o interesse também por pão com açúcar e manteiga, dulcíssima iguaria que embalava minhas tardes. Nem mesmo liguei ao perceber que não me transformaria em Jeannie, a gênia, desparecendo, apenas com um aceno de cabeça, com as tarefas domésticas e repetitivas. Também não me aborreci, só estranhei um pouco, alguns anos mais tarde, quando um bando de aborrescentes chamou-me de tia ao pedir uma informação, por favor. Reagi com dignidade até mesmo quando numa dessas vezes quem me chamou assim tinha, no mínimo, uns 10 anos a mais que eu. Noutro dia ouvi, à minha passagem: "Hummm, a tia aí ainda dá um bom caldo". Preferi pensar que fosse com a mulher ao meu lado. Na sequência, os vendedores começaram a me tratar por senhora. "A senhora deseja algo? Posso ajudar, senhora? Assine aqui, senhora, por favor." Fui me acostumando a me entrincheirar atrás dos comentários comparativos que bondosos amigos vez em quando faziam: "Ih! nem se compara, você dá de 1000 na fulana..." "Sério? já fez 50? Nem parece..." E, quando fui avisada por um deles, muito bem intencionado, aliás, de que havia cabelos brancos na parte de trás de minha cabeça, nem liguei; comprei minhas tinturas e, hoje, já nem sei mais que tom tem a cor original de meus cabelos. Mas e daí? De que me serviria saber? Mas, dias desses, finalmente perdi todas as esperanças de vencer a guerra. Me dei conta de que pouco a pouco venho perdendo batalha por batalha, cada uma das trincheiras caiu em mãos inimigas. As tinturas, os cremes para dia, para noite, as massagens, os elogios (que agora me soam educadamente piedosos), os truques de maquiagem, nada teve valia, porque o inimigo é aquele que mais feroz fica quanto mais eu corro dele. Finalmente caí do salto, capitulei, entreguei o ouro ao bandido, quando o primeiro fio de cabelo branco surgiu na sobrancelha.
Ah! Péraí. Aturei tudo, tudo. Não podiam me deixar ao menos isso?


A data que o aço grava na lápide e que os livros paroquiais registram é posterior a nossa morte; já estamos mortos quando nada nos toca, nem uma palavra, nem um desejo, nem uma memória. Eu sei que não estou morto.

Poema “O palácio” de Jorge Luis Borges

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Liege Lopes disse:
"E pensar que há uns trinta e tantos anos eu acompanho essa guerra..."

Porque a carne é forte e o pão, doce.

Tive uma fase meio "hippie", meio alternativa, nunca inteiramente abraçada principalmente porque:



"Não adianta mentir pra mim mesma
Ficar me enganando, tentando dizer
Que nunca na vida, nunca na vida eu gostei de pão doce
Porque por mais que eu queira esconder
A verdade é que eu adorava pão doce
Não podia passar sem pão doce
Bastava ver padaria, que logo eu ia, que logo eu ia
Comprar

Não adianta mentir pra mim mesma
Porque no fundo, porque no fundo eu sei muito bem
Que essa história toda de não comer açúcar
Que essa história toda de não comer pão branco
Que essa história toda de viver de mel e pão integral
Isso tudo só foi começar muito depois
Depois de um tempo em que eu era
Tão completamente ingênua
Tão sem força de vontade
Que as doces delicadezas
De qualquer guloseima
Lânguidas me seduziam
E minha língua sofria
De incontrolável fascínio
Por cremes dourados
E frutas cristalizadas
Feito rubis incrustadas
Nas crostas crocantes dos pães

Mas hoje
Hoje tudo é diferente
Se eu olho pruma padaria, me ponho cismando, chego a duvidar
Como é que pôde um dia
Eu ter entrado tanto lá!...

Porque por mais que eu queira
Mentir pra mim mesma
Ficar me enganando, tentando dizer
Que nunca na vida, nunca na vida eu gostei de pão doce
Fazendo um exame detido, sendo sincera, eu tenho que admitir
Que a verdade, meus amigos (pelo menos no que tange a trigos)
A verdade no duro, doa a quem doer
A verdade é que eu adorava pão doce
A verdade é que eu adorava pão doce
A verdade é que eu adorava pão doce..."

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A música é de Carlos Sandroni, a voz clara e doce de Clara Sandroni, ao fundo um arranjo lindo de flautas, que me remete a Caldera, com Milton e o Grupo Água no Cd Geraes. E a ironia fina pra defender uma tradição: o pão doce nosso de cada dia.

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sou+no(A)mar disse:
Eu aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaamo essa música!!!! :D

"És um Senhor tão bonito..."



Seiscentos e sessenta e seis (Mário Quintana)

A vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são 6 horas: há tempo…
Quando se vê, já é sexta-feira…
Quando se vê, passaram 60 anos!
Agora, é tarde demais para ser reprovado…
E se me dessem – um dia – uma outra oportunidade,
eu nem olhava o relógio
seguia sempre em frente…
E iria jogando pelo caminho a casca
dourada e inútil das horas.

(In Nariz de vidro)

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P. disse:
"Obrigada, Deus, pela existência de Mário Quintana!
Obrigada, Deus, porque a Nilva conhece este poema do Mário Quintana e o publicou!
Obrigada, Deus, porque eu já sei ler com os olhos, e estou aprendendo a ler com o coração!"

Brincando com Ítalo Calvino



- A Nilva roubou pão na casa do João.
- Quem, eu?
- Tu, sim.
- Eu não.
- Então quem foi?
- Foi a Pêti.

Uma brincadeira que famílias fazem durante viagem longa para distrair, principalmente, um passageiro de 8 anos.

A outra é formar uma estorinha unindo frases uma a uma.
Ele quer começar sempre. Diz a primeira frase e cada um de nós acrescenta mais uma à frase anterior e a história vai saindo, parecendo sem nexo, fantasiosa, engraçada.

Lembro então, Ítalo Calvino e seu livro dividido em capítulos assim:

Se um viajante numa noite de inverno,
Distanciando-se de Malbork,
Debruçado na borda da costa escarpada,
Sem temer a vertigem e o vento,
Olha para baixo na espessura das sombras,
Em uma rede de linhas entrelaçadas,
Em uma rede de linhas entrecruzadas,
Sobre o tapete das folhas iluminadas pela lua,
Em torno de uma fossa vazia,
Que história aguarda, lá embaixo, seu fim?

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Ricardo Duarte disse:
"Santa curiosidade: onde essa foto foi tirada? E o que o pessoal está lendo?
Beijos"

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Liege Lopes disse:
"Que interessante alusão ao autor de O Visconde Partido ao Meio. Nem me ocorreu que brincadeira tão simples dentro de um carro 1.0 poderia remeter a um dos geniais. Mas isso é cultura, né? Está em volta de nós."

Uma mulher dos anos 20

Não é de hoje que fico assombrada com mulheres decididas a sofrer o menos possível; que não se submetem a leis patriarcais inúteis e/ou insanas; que se valem de brechas (elas existem, sempre existiram) nessas mesmas leis; mulheres que pagam por suas escolhas um preço nem sempre justo, e que, apesar de, ou por tudo isso, enfim se tornam vitoriosas, felizes, e encontram razão de se orgulharem de serem o que são.

Escrevo para falar de mulheres como minha bisavó, Sá Augusta Moreira, que ao ficar viúva, teve seus filhos retirados de sua companhia porque algum homem determinara que viúvas não tinham o direito de ficar com eles e nem meios de sustentá-los. O único filho que seu irmão, o Juca, permitiu que ficasse com ela, havia nascido há doze dias quando o marido, Julião Moreira, morreu. Sá Augusta ficou sozinha na casa com o bebê porque o estava amamentando.

Ela esperou.

Informou-se na polícia de que se se casasse de novo, poderia retomar os filhos. E foi o que fez. Havia recusado um pretendente até ali, mas decidiu que pagaria o preço de um novo casamento para ter seus filhos novamente perto de si. No dia seguinte ao casamento com Joaquim Gomes — o viúvo que era pai do meu avô materno, que à época teria uns 15 anos —, foi à delegacia. E depois, de fazenda em fazenda, resgatando seus filhos com o bisavô Julião: Jovana, minha avó materna, e os tios Cecília e Manoel.

De onde retirava forças para planejar suas ações?
Que pensamentos fervilhavam na cabeça daquela mulher?
E que mulher! Quanta garra, coragem, amor, inteligência, perspicácia.

Já idosa, adoentada, ainda veio ao Rio de Janeiro procurar outro dos filhos que tivera com Joaquim Gomes, o tio Marcelino que emigrara de Miracema e aqui no Rio, sumira, ninguém sabendo dele. Sá Augusta andou pelas ruas, nos bondes, perguntando, tentando descobrir pistas desse filho. Era o que ela podia fazer. Infelizmente morreu sem ter notícias dele.

Ah, se ela tivesse vivido no tempo em que podemos sobreviver do nosso próprio trabalho, em que temos acesso a informações que nos libertam de todo tipo de opressão, este tempo em que nos beneficiamos de cada mudança ocorrida!

Ah, se ela pudesse saber quão pioneira foi, intuitivamente, usando as armas de que dispunha, muito antes do dito movimento feminista!

E se ela pudesse saber que Miracema parou, quando de sua morte, porque Sá Augusta espalhou em torno de si o mesmo amor que tivera aos filhos, o amor que a fez encontrar os meios para contornar os obstáculos que a vida lhe impusera. E todos os felizardos que frequentaram sua casa por todos aqueles anos — uma casa que nunca ficava vazia —, todos os que beberam de seu bom humor, de seu otimismo, de sua alegria em viver, pararam para acompanhar aquela mulher forte e bonita pela última vez.

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Irinéa Maria disse:
"Fantástica historia! Ser mulher, negra, em 1920, foi o grande desafio pra essa guerreira.
Fico feliz em conhecer a descendente de Sá Augusta."
bj.

Jiboiar

A mulher se senta, à tardinha, num toco da árvore velha que precisou ser podada, como num banco improvisado, jiboiando, sentindo o calor do sol e o seu cheiro - sim, afirma que do sol emana um perfume que se existisse engarrafado, e se o preço fosse acessível, gostaria de usar. É do tipo que pensa em preços acessíves, sonhos e amores possíveis. Não se lembra muito dos sonhos noturnos. Só dos muito marcantes, como aqueles que sonhava na época em que fazia análise. É de olhos bem abertos que gosta de fazer planos. Roteiros de viagem, principalmente. Um dia pensa em conhecer Portugal e Espanha, seus castelos e os resquícios da passagem árabe por ali, catedrais européias, a cidade de Londres, os campos escoceses. Lugares citados em livros, em músicas. Planos guardados a sete chaves.
Já passou por muitas experiências, mas continua trazendo os olhos vivos, brilhantes, de quem se surpreende sempre com novas descobertas feitas seja em pessoas, livros, atlas; ou com gatos brincando de esconde-esconde, lagartos imóveis nos muros quentes, imagens do deserto da Austrália e do povo turco na época em que habitavam subterraneos.
Mas naquele momento só quer receber o calor do sol, sem pensar em nada. Nem planos, nem compromissos.
Os dois cachorros correm pra receber seus carinhos, sabendo que sempre são bem recebidos quando ela aparece naquela parte do quintal. O mais forte deles traz um pedaço de pano que vem carregando no focinho, serelepe, gingando e abanando o rabo, querendo brincar de cabo de força. São cães felizes.
Finalmente ela se levanta, já satisfeita com a reserva de calor que armazenou no corpo, na pele agora morna onde o sol se banhou. Felizes, ela e o sol, em cumprir seus papéis na engrenagem.


Aos trinta anos Zaratustra afastou-se da sua pátria e do lago da sua pátria, e dirigiu-se à montanha. Durante dez anos gozou por lá do seu espírito e da sua solidão sem se cansar. Variaram, no entanto, os seus sentimentos, e uma manhã, erguendo-se com a aurora, pôs-se em frente do sol e falou-lhe da seguinte maneira: "Grande astro! Que seria da tua felicidade se te faltassem aqueles a quem iluminas? Faz dez anos que te apresentas à minha caverna, e, sem mim, sem a minha águia e a minha serpente, haver-te-ias cansado da tua luz e deste caminho. Nós, porém, te aguardávamos todas as manhãs, tomávamos-te o supérfluo e bendizíamos-te. Pois bem, já estou tão enfastiado da minha sabedoria, como a abelha quando acumula demasiado mel. Necessito mãos que se estendam para mim. Quisera dar e repartir até que os sábios tornassem a gozar da sua loucura e os pobres, da sua riqueza. Por essa razão devo descer às profundidades, como tu pela noite, astro exuberante de riqueza quando transpôs o mar para levar a tua luz ao mundo inferior. Eu devo descer, como tu, segundo dizem os homens a quem me quero dirigir. Abençoa-me, pois, olho afável, que podes ver sem inveja até uma felicidade demasiado grande! Abençoa a taça que quer transbordar; para que dela jorrem as douradas águas, levando a todos os lábios o reflexo da tua alegria! Olha! Esta taça quer novamente esvaziar-se, e Zaratustra quer tornar a ser homem". Assim principiou o ocaso de Zaratustra.


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Ricardo Duarte disse:
"Que lindo, Nilva!
Essa integração com a natureza anda ficando cada vez mais esquecida, em meio a outras engrenagens. Temos muito a aprender com o cacto do Manuel Bandeira:

Um dia um tufão furibundo abateu-o pela raiz.
O cacto tombou atravessado na rua,
Quebrou os beirais do casario fronteiro,
Impediu o trânsito de bondes, automóveis, carroças,
Arrebentou os cabos elétricos e durante vinte e quatro horas privou a cidade de iluminação e energia:

- Era belo, áspero, intratável.
Beijos"

Eu assumo

05 anos - o quarto de um tio era a minha ilha da fantasia: revistas Manchete, Cruzeiro, gibis, Seleções do Riders Digest, partituras do acordeonista Mario Mascarenhas com suas capas glamurosas; e, onde lia, fissurada, as aventuras de Brigitte Monfort, a espiã no. 1 dos EUA, que bebia champanhe Don Peringnon 55 com duas cerejas dentro, e, claro, namorava o espião no. 1... e eu devorava tudo!

08 anos - dona Eunice minha mãe ouvindo as rádio-novelas da Nacional de Dayse Lucidi e Domício Costa; os belos programas de música brasileira onde ouvi Dalva de Oliveira, Nelson Gonçalves, os Cantores de Ébano, Ray Charles, Nat King Cole, Ângela Maria. E até hoje sou eclética.

12 anos - a Globo exibia na sessão da tarde filmes ma-ra-vi-lho-sos, clássicos com Bette Davis, Liz Taylor, James Dean, Marilyn Monroe, Elvis Presley e mais: os 3 Patetas, Nationaro Kido, Jeanie é um gênio, a Feiticeira, Bat Masterson (no velho oeste ele nasceu tárárá tárárá tárárárárárárá).

15 anos - Big Boy saudando os ouvintes da AM Mundial: Hello, Crazy People! e teve também minha iniciação às telonas no cinema Palácio, um dos maiores da América do Sul.

18 em diante - continuei indo a todos os cinemas: os de rua - que a IURD comprou pra encher a 'burra' de dinheiro nos descarregos maquiados em culto evangélico, os das galerias na Prado Jr. e na Conde de Bonfim. Entrava no Cine Lgo. do Machado com sacões de pipoca (quando ainda dava pra comprar ingresso mais pipoca) e uma vez vi duas sessões seguidas de Al Pacino em Ricardo III. E nasceram as FM´s. E vieram VHS, CD, DVD.

Ah! os DVD´s e seus making off's!

E vieram o e-mail, o orkut, o blog, o twitter, o facebook.

E tem os e-books, os tablets, ipods, ipads.

E a gente sempre tentando correr atrás das novidades.

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Liege Lopes disse:
"Agora falta vc escrever um texto falando do vinil, do compacto, do som 3 em 1, do toca fitas com auto-reverse..."
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Laura Vieira disse:
"E com o orkut, claro, vieram mais sonhos e vontade de escrever mais e mais...
E vieram novos @migos...
Amigos que amam e que ficaram comovidos ao "visualizar", depois de passear pelo seu blog e ler as suas postagens,a criança e adolescente que você foi um dia...
Amigos que a amam e admiram por quem você é agora e,até mesmo, por quem você foi...
Fiquei comovida quando pensei naquela menininha devorando revistas, sonhando acordada no cinema..."

Um pelo outro

"Fica", ele disse, numa madrugada longínqua
Os lábios dela disseram ‘Não posso’
enquanto profundamente ansiava que ele insistisse...

Anos mais tarde outro homem pediu: "Fica..."
Então, como se pudesse expiar a negativa ao outro,
Ela ficou.

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sou+no(A)mar disse:
"Um amigo me disse que a vida é um sistema de compensações.
Será?"

"In the future everyone will be famous..."

Pessoas me interessam, me impressionam e me surpreendo sempre com seus estratagemas.

Por exemplo, os que usamos para alcançar nossos preciosos 15 minutos de fama. Alguns os dividem em suaves (nem sempre, pelo menos pros meus ouvidos) prestações, cada uma um toque do celular. E o charme é demorar o máximo possível pra atender, saboreando os olhares furtivos de quem procura o dono daquele toque.

Foi assim que me chamou a atenção o último dos que ouvi, nada menos que a musiquinha de entrada do Jornal Nacional, até a parte em que Fátima Bernardes entra com sua marca inconfundível: "Boa Noite." Seco, justo, profissional. Só depois disso o dono do aparelhinho atende: "Alô?", a expressão blasé de "oh! meu celular tava tocando! nem tinha percebido...".

Outro que me faz rir com a criatividade do dono: o toque atribuído ao chefe é, nada mais nada menos que o tema da novela Escrava Isaura: "lê rê lê rê lê rê rê rê rê rê" (subentendido: vida de nêgo é difíci é difíci como quê). Tudo a ver.

O que Andy Warhol não previu foi que, cada um de nós se não se expressa por meio das ortodoxas artes plásticas, busca na tecnologia cada vez mais ao alcance, o meio de expressão possível e o que é melhor, gratuita e participativa. E melhor (ou não) ainda, por mais que míseros "fifteen minutes".

E somos todos criativos, talentosos, artistas. Enfim.

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Cássia disse:
"Você é muito observadora, Nilva. Gostei do seu texto. É assim que as pessoas se dão ares de importância, fazem seu suspense, constroem seu charme. :) Percebi algo semelhante também em relação ao uso de óculos escuros, com os quais se cria um ar de poder e mistério. Até escrevi a respeito num texto chamado Óculos nos Óculos. Um abraço."

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Irinéa Maria disse:
"Gostei da sua forma de escrever, leve, decidida, sem firulas!
Gostei de estar num domingo de carnaval lendo textos inteligentes e saboreando um doce de abóbora com receita da minha vó Yayá!
Luz!"

Filme: O Detetive Cantor

O Detetive Cantor, filme com Robert Downey Jr. sobre um homem que desenvolve psoríase decorrente de trauma. Está num hospital em tratamento e mistura, em seus delírios provocados pela medicação, sua vida à dos personagens de seus livros. Mel Gibson, quase irreconhecível, é o terapeuta que descobre, ao lê-los, o fio da meada, o objeto do trauma e o modo de curá-lo. Assim, o detetive cantor começa a enxergar que a pista para sua cura, está naquilo que pensa ser fantasia e que transforma em enredo de seus livros. O paciente é produto das músicas que ouvia nas rádios e dos livros de detetive que lia quando criança. Os musicais que aparecem no filme são a expressão das emoções e lembranças do personagem. A cura vai se processando de dentro para fora ao longo do filme, em que vemos também, cenas dos livros, musicais, flash backs. Roteiro formidável, surpreendente, e trilha sonora escolhida a dedo pra gente cantarolar junto.

Mulher cansada procura

Tenho andado muito cansada. E fico arranjando álibis pra deixar de fazer isso e aquilo. Mas as grades das janelas estão em “petição de miséria” e às vésperas do Natal fico ansiosa pra enfeitar a casa. E com janelas neste estado, claro que Papai Noel se recusaria a dar o ar de sua graça e bolas e luzes só realçarão a poeira. Como arranjar um bom álibi que satisfaça minha consciência? Lentamente uma imagem começa a se instalar em minhas retinas também cansadas: a da bela Scarlet Johanson em “Moça com brinco de pérola” quando, sensivelmente, percebe que limpando as vidraças da janela do estúdio de Vermeer, alteraria a luz que o pintor captava no quadro em andamento. Eureca, achei meu melhor álibi! Agora é só arranjar uma tela num cavalete e posicionar bem às vistas das pessoas...


Livro: Se um viajante numa noite de inverno, Italo Calvino

"No fecho do século XIX, o poeta francês Stéphane Mallarmé sonhou um livro aboluto - aquele Livro que tomaria o lugar de Deus, princípio e fim de toda consciencia humana. Quase cem anos depois, ainda que (ou melhor, talvez por causa disso mesmo) ciente de tamanha impossibilidade, Italo Calvino se deixa envolver por essa suprema ambição e oferece, em Se um viajante numa noite de inverno, aquilo que poderia ser "o romance de todos os romances", romance cuja estrutura narrativa só adquire sentido em função do ato de escrever e, sobretudo, do de ler.


Um livro que se auto-apresenta ao leitor assim:
Estás para começar a ler o novo romance Se um viajante numa noite de inverno, de Italo Calvino. Descontrai-te. Recolhe-te. Afasta de ti todos os outros pensamentos. Deixa esfumar-se no indistinto o mundo que te rodeia. A porta é melhor fechá-la; lá dentro a televisão está sempre acesa. Diz aos outros: "Não, não quero ver televisão!". Levanta a voz, senão não te ouvem: "Estou a ler! Não quero que me incomodem!". Não devem ter-te ouvido, com aquele barulho todo; fala mais alto, grita:”Estou a começar a ler o novo romance de Italo Calvino!"

Alguns livros marcam minha vida, entram na lista de re-leituras. Assim é 'Se um viajante numa noite de inverno' de Italo Calvino.

Livro cujo personagem central é o próprio objeto-livro. Que divide a tarefa da escrivinhação com o leitor, ao se colocar na pele de quem o está lendo. Que sugere posições para ser lido, que brinca com o próprio ato de ler (e escrever) e que depois mergulha num labirinto, num quebra-cabeças de estilos e estórias, onde um livro leva a outro e a outro... que nunca é concluído...

Genial, ousado, surpreendente, desafiante, profético e atualíssimo (foi escrito em '79).
Perfeito para quem saboreia e ama esse objeto feito de papel, tinta e palavras.
Perfeito para quem gosta dos bastidores da criação da literatura e, claro, para quem não se importa em ficar sem saber o final da história...

Tradução de Margarida Salomão, Nova Fronteira, 1982

Lavínia e Abílio

Advinha o que comprei? O quê? O novo do Pink... The Wall. UAU. A gente podia combinar pra ouvir junto, que tal? É tudo o que eu quero. Você traduz as letras. Pode ser sábado? Pode, mas eu tenho que cantar no casamento daqueles nossos amigos... Sem problema, você vai direto pra igreja lá de casa. Então tá combinado.



Cinco litros de vinho tinto, lp na pickup, pausas pra traduzir letra a letra, e tome vinho e Comfortably Numb, tome vinho e Hey You. Mais um pouquinho? Hummm muito bom este vinho. Vera, Vera! Vera! What has become of you, Vera! Vera! O que aconteceu com você? Ok, essa é fácil até pra mim... Sons de helicópteros assustando as outras casas da vila e os dois cantando junto. Tá na hora de ir embora. Pôxa, que pena. Mas como? tonto? Você está tonto? Oh mai godi. E agora? Os outros vão perceber que você está praticamente, ligeiramente bêbado! Mas eu tenho que ir pra igreja e cantar no casamento, não posso faltar. Tudo bem, vou com você até o ponto do ônibus pra dar uma força. Quer um café? É bom, né? Ajuda a cortar. Vamos lá. Muitos ziguezagues e muitas gargalhadas pela rua. Olha lá o ônibus, faz sinal. Beijos, foi o máximo esta tarde, né? Se foi! Depois me conta como foi o casamento. Ok. Tomara que ninguém perceba. Sei... Isso é pedir demais. Mas valeu a pena. Pink Floyd vale qualquer sacrifício. A gente é muito doido. Que nada.


"Pois é. Valeu tanto a pena que é um dos dias inesquecíveis na vida do rapaz. O primeiro porre. Sabe-se lá como, chegou ao seu destino e tropegamente informou em alto e bom som que estava muito doido. Protegido pelos amigos, fez pura figuração ao cantar no casamento. Mas o que importava? A viagem era eterna e os helicópteros ainda soavam na cabeça. Apocalipse now? Não. Apenas Pink Floyd. E ele se sentindo comfortably numb."

A prima fashion


"Não há bota velha que não encontre um pé cambaio."

A prima tem uma coleção de botas. Com padronagem xadrez, com franjas à moda country, uma preta "clássica", outra com cano longo que 'fecha com cadarço e zíper'. Enfim, é muito fashion esta prima.

Estávamos saindo para levar o pequeno à aula de inglês, quando ela dá falta do celular. Começamos a procurar pelos lugares óbvios, dentro da bolsa, na mochila do pequeno, sob os bancos do carro, no porta-luvas. Nada de achar. Então liguei do meu celular para o dela, certas de que ouvindo o toque chegaríamos até o perdido. Recomeçamos a investigação orientadas pelo toque. Estava perto, muito perto. Mas onde?

A prima sai do carro a ver se o dito cujo não está caído na rua, do lado de fora da porta ou mesmo embaixo do carro.
E naquele momento noto que o som está se afastando. A prima volta, o som aumenta.
Que mistério é esse?
Apalpa os bolsos do jeans e os do casaco. Nada. "Ah quer saber? - diz ela -, vam'bora, senão a gente se atrasa. Ele vai aparecer."

Quando a prima se senta ao voltante pra dar a partida, sente um certo incômodo.

- "Mas não é possível!" E cai na risada. Todo aquele tempo, o bendito celular estivera dentro do cano longo da bota que 'fecha com cadarço e zíper'! Tá vendo? Além de super fashion's, têm utilidade prática.

Não terá sido à toa Machado de Assis colocá-las a dialogar naquela praia deserta de Sta. Luzia.

http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/centenario-de-machado-de-assis/filosofia-de-um-par-de-botas.php