Caderno de anotações




Memória é realmente uma função do cérebro que surpreende. A minha me prega peças ou então me proporciona momentos deliciosos.

Dia desses encontrei um caderno em que fiz diversas anotações sobre filmes, peças, exposições, enfim minha vida cultural estava ali. Pois só mesmo lendo as anotações sobre a peça "Nardja Zulpério" foi que me lembrei de tê-la visto.

O caderno diz que foi em 1991. Eu tenho que acreditar.

Regina Casé sozinha no palco, num monólogo de Hamilton Vaz Pereira, interpretando vários papéis, como o de uma mulher superatarefada que chega em casa e ouve na secretária eletronica diversas mensagens com pedidos para que ela faça várias coisas: uma letra de música, uma palestra sobre Psique e Eros e o roteiro para uma peça sobre Nietzsche. Nardja não sabe por onde começar e ainda tem que lidar com cobranças de filhos, ex-marido, amigos. Fica estressada com a ausencia de ideias para qualquer das tarefas. Tenta então dormir mas é interrompida pelo interfone - um entregador lhe traz fitas de vídeo. Neste momento vem-lhe ideias para a palestra sobre Psique e Eros - o que é inserido na peça transformando-nos no público que a assistirá.

A lembrança do mito de Psique faz com que Nardja compare sua própria vida com a de Psique, vítima das tarefas hercúleas que Afrodite impõe como castigo por ela ter ousado, reles mortal, seduzir Eros. Imperdoável. Quando finalmente Psique consegue cumprir as tarefas é agraciada com uma bebida - o néctar dos deuses - dada pelo próprio Zeus, o que a torna imortal.

Regina é hilária e tem controle absoluto do palco e do público. Pede a participação de pessoas e um homem que aceita diz se chamar Jean. Regina se faz de "gostosa" para ele e lhe pede que apanhe água e leve até ela que já está no meio da plateia. Faz, sim, algumas caras e bocas, como por exemplo, na crítica às modelos para as quais fechar bem os olhos, esticar a boca num bico "nojento" para a frente e jogar o cabelo para um lado de modo a cobrir metade do rosto é sinônimo de sensualidade felina. E demonstra passo a passo a caricatura.

Canta a musiquinha que acaba de inventar para consolar-se:
"Dou um banho ni mim
me visto bem bacana
penteio meu cabelo
me chamo de lindona lindona
me pego bem vistosa
me chamo de cremosa, cremosa
Dou um banho ni mim, penteio meu cabelo, me chamo de gostosa, gostosa, gostosa"

Alguém, na época, disse que a peça "É um elogio à solidão, à valorização da própria existencia através do trabalho."

Enquanto lia minhas anotações fui me lembrando que ri muito, que todo mundo riu muito e saímos do teatro achando Regina uma das melhores humoristas da época. Regina era da turma hilária do programa da Globo, o TV Pirata. A peça revelou que a atriz podia voar sozinha. Assim como sua personagem.