O melhor amigo do homem? ou A parenta

Para não ter as orelhas aumentadas muito antes da hora, vou omitir grau de parentesco e nome dos protagonistas rsss...

Um belo dia, uma de minhas parentas sai pra fazer compras e como de costume deixa pronto o almoço do marido e o do cachorro... um sobre o fogão, o outro dentro do forno. Chega o marido para almoçar e dar a comida do totozinho.
Bem mais tarde quando a parenta chega das compras, esbaforida, cansada, achando que cumpriu com sucesso suas tarefas do dia e é só colocar os pés para cima e ver a novela preferida, é recebida com uma senhora cara feia e a reclamação:
- Puxa vida, mulher, que comida foi essa que você fez hoje? tava ruim demais, não agüentei comer e dei pro cachorro!
Minha parenta levanta, vai até a cozinha e, surpresa! O prato feito pro marido, coberto com outro, está, bonitinho, dentro do forno...

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Andando em círculos





Sou uma estrada procurando só levar o povo pra cidade só
Se meu destino é ter um rumo só,
choro em meu pranto é pau, é pedra, é pó. (Sidney Miller)



Ah se eu fosse insustentavelmente leve.
Mas não. Estou sempre matutando. Vendo mensagens nas entrelinhas, nas imagens, nas muitas metáforas. Duvidando daquilo que apenas é.
Se leio em algum lugar: es-tra-das, penso em estradas gastas, em estradas nunca caminhadas, em caminhos a desbravar, descobrir.
Em caminhantes, andarilhos, romeiros, procissões.
Em encruzilhadas.
Imagino o que desejará o caminhante? sim, porque quem caminha vai a algum lugar, em busca de algo.
Vislumbro caminhos sem volta ou ainda sendo construídos, passo a passo.
Decolo numa visão aérea da paisagem que circunda a estrada. Vejo um rio, uma aldeia, montanhas, pedras, uma ponte. Sempre as pontes.
Planejo a bagagem a ser levada. A mala. Abarrotada de quê, meu Deus? de livros? ou fotos antigas dos entes queridos que serão emolduradas mais tarde? de prospectos de alguma agência turística? mapas? foices e facões?

Quando finalmente repouso, encaro a nunca simples realidade.
O caminho envelheceu, a estrada já está esburacada, a foto amarelou, o facão enferrujado. O caminhante coberto de poeira, carrega com esforço a mala já meio aberta por onde saem pedaços de panos, restos de planos.
E no horizonte relâmpagos cruzam o céu ameaçando desabar um temporal.

Tudo começou quando li em algum lugar a palavra: es-tra-das.

De livros e sinas

Extraordinário o relacionamento íntimo que tenho com livros e as histórias neles contidas.
Que magia percebo emanar destes objetos.
Que poder exercem sobre mim.
Com que encantamento me pego a olhar, tocar, preparando-me para o ato de desvendar o que pode estar por trás de sua capa, lombada.
É sempre uma experiência similar ao enamoramento.

Acabo de ganhar Walt Whitman, Folhas de Relva, uma edição de capa suave ao toque, bela, que menciona nos créditos, poeticamente, ter sido o livro "impresso na primavera de 2006."

Sinto uma estranha sensação, a de que devo lhe pedir desculpas por ter que fazê-lo esperar um pouco. Ainda não terminei de reler Caminho da Liberdade, de Howard Fast. Porque sei que me esperam emoções muito fortes, de grande tristeza, indignação e revolta, nas últimas páginas deste relato dos anos seguintes à Guerra de Secessão americana, suas conseqüências na vida dos escravos libertos, a organização e fortalecimento da Klu Klux Klan, o conseqüente desmoronamento de um sonho que aqueles homens, mulheres e crianças estiveram vivendo, finalmente adquirindo direitos humanos, tais como os de estudar, comprar terras, comercializar o produto de seu trabalho livre, em igualdade de condições com os brancos. Haviam conseguido também o direito de ter representantes na Convenção onde leis iriam ser criadas ou modificadas para que fosse possível a reconstrução dos estados sulistas após a Secessão. Assim Gideon Jackson foi escolhido para ser representante dos negros e teve que viajar para a Carolina do Sul. Tudo envolvido em uma aura de sonho, mistério.
Sonho brutalmente interrompido por aqueles que acharam o bolo muito pequeno para ser dividido.
Estas últimas páginas me emocionaram muito a cada vez que reli este livro.

Talvez eu esteja ainda mais sensível (coisas da idade), mas percebo que, desta vez, sentirei mais profundamente o sofrimento que lerei nas palavras que descrevem a luta daquela comunidade ao perder, um a um, seus membros e entes queridos, alguns ignorando o motivo de tamanho ódio, surpresos com quanta brutalidade pode ser capaz um único ser humano, atônitos com a hipocrisia de uma sociedade dita cristã, que fechou os mesmos olhos que, ao entrar numa igreja, dirigem à imagem do Cristo ao fazer o sinal da cruz.

Assim vou adiando o momento de retomar a leitura, espantada comigo mesma, afinal, posso simplesmente desistir do livro, posso me convencer de que não passa de ficção, posso colocá-lo por baixo na pilha-dos-que-esperam-sua-vez-de-serem-lidos, posso primeiro ler Walt Whitman, já que o queria tanto e acabo de ganhá-lo...

Mas não. Vou cumprir minha sina!


Filme: A Última Ceia

O filme A Última Ceia é frio, cortante, amargo, direto. Como a miséria, como o ódio racial, como o remorso. Três gerações de guardas prisionais morando juntos. Um presidiário negro será executado em algumas horas. Seu último pedido, desenhar. Este tem um filho que também desenha, aparentemente sua única forma de expressão. No restante do tempo, sofre pressão da mãe que não o aceita como é, gordo, mudo, devorando obcecadamente todas as guloseimas da casa. Mas o que na verdade ela não aceita, é a vida que está levando, à procura de emprego, às portas de ser despejada do lugar pobre em que mora, às vésperas de se tornar viúva, obrigada finalmente a andar a pé, pois o carro também morre. Os guardas Hank e Sonny encaminham o preso para a cadeira elétrica. O jovem Sonny fraqueja e apanha do pai, Hank, na frente de outros guardas que tentam impedir a surra. Um deles é negro e Hank exige que tire suas “mãos sujas” de cima dele. Em casa, Sonny desfere ao pai uma única pergunta: “Você me odeia?” ouve a afirmativa de Hank e responde: “Eu, ao contrário, sempre o amei” e se mata com um tiro. Hank e seu pai o enterram no quintal ao lado de suas duas mulheres. Logo a seguir, Hank pede demissão e compra um posto de gasolina. Passa a frequentar a lanchonete em que a viúva do negro executado está trabalhando. Dá carona para ela. E socorre a ela e ao filho, logo após ter sido atropelado na autoestrada. O menino morre e ela se desespera com a perda dele porque é como se perdesse sua última tábua de salvação, aquilo que ainda a mantém indo em frente. É quando um romance inicia-se entre os dois. Tórrido. Desesperado. Algo como uma chance de ainda terem algo próximo do amor. Eles se precisam. Cada um por seus motivos. Remorso, sobrevivência. O homem dá o nome dela, Letícia, ao posto recém-comprado e dá a ela o carro que fora do filho. Em troca ela lhe compra um chapéu e vai a casa dele com a caixa do presente que é avaliado pelo pai dele que percebe o que está acontecendo e diz a ela que Hank segue as tradições, porque “homem só sabe bem o que é uma mulher quando transa com uma negra”. Ela não precisa dizer mais do que “Conheci teu pai” para que Hank leve o velho para uma casa de repouso, porque “ali tratarão bem” dele. Assim, sem titubear. Faz o que julga ser preciso para alcançar a nova vida ao lado dela. Pinta e enfeita a casa, recoloca os móveis nos seus lugares e busca a mulher. Diz-lhe que quer cuidar dela ao que ela lhe responde “Isto é bom, porque eu preciso de alguém que cuide de mim.” Enquanto ele sai pra comprar um sorvete pros dois, ela anda pela casa e encontra fotos de Sonny e os desenhos que seu marido fizera dos guardas prisionais antes de sua execução. Entende tudo. Quem é aquele homem, o que ele está tentando fazer e o que ela mesma está fazendo ao lado do executor de seu marido? Se debate, chora, revolta-se contra a vida que lhe prega mais esta peça. Quando Hank volta com o sorvete, automaticamente aceita que lhe dê colheradas na boca, olha do rosto dele para o céu, depois para os três túmulos existentes no quintal, de novo praquele homem sentado ao lado dela, compartilhando um sorvete, aparentemente é tão simples, um homem e uma mulher sentados na porta de sua casa à noite, tomando sorvete. Será que suas trágicas histórias particulares serão regeneradas através daquela união?