13 de julho


"13 de julho


Sete dias sem uma nota, um fato, uma reflexão; posso dizer oito dias, porque também hoje não tenho que apontar aqui. Escrevo isto só para não perder longamente o costume. Não é mau este costume de escrever o que se pensa e o que se vê, e dizer isso mesmo quando se não vê nem pensa nada."


Machado de Assis em "Memorial de Aires"

Fuja da luz

"E não tinha nada de mais, nada de mal, que meu coração tivesse se quebrado, de tão usado." Ressurreições/1, Galeano em O Livro dos Abraços.

Ao contrário do que é habitualmente esperado, minha experiencia com a morte não teve luzes fortes no fim do túnel, nem visões de mensageiros do paraíso, não flutuei acima do meu corpo, não ouvi vozes, enfim, nada do plano místico ou metafísico. E continuo com medo da morte. Admito também que uma das coisas de que mais sinto falta é da blusa que usava no dia e que alguém cortou rapidamente pra fazer a massagem cardíaca. A blusa novinha, comprada depois de muita hesitação, cortada assim, inutilizada. Saudade.
A primeira coisa de que lembro é que urrava, gemia, gritava enquanto retornava da parada cardíaca. Dei muito trabalho à equipe da UPA naquele 15 de março. Pode parecer grosseira a comparação, mas meus grunhidos pareceram os gritos de sofrimento de cada porco que se matava em casa, por meu avô e tios. (Nunca consegui chegar perto do local onde aquilo acontecia por causa dos gritos do animal pressentindo a morte.). Aquela equipe talvez se lembre da mulher que se debateu furiosamente como se não quisesse voltar daquele estado sereno que a breve morte lhe proporcionou. Saudade daquela paz também.
A segunda coisa de que lembro é de uma mão fria tocando meu braço, e uma voz dizendo: "dona Nilva, dona Nilva, está tudo bem agora, nós estamos aqui para levar a senhora para o HFAG, tudo bem?" Ante meu aparvalhamento, repetiu que era a Dra. X e que iam me levar para o hospital, que eu tivera um infarto, mas agora estava tudo bem. Lembro dos cabelos dela logo abaixo das orelhas, lisos e pretos. O primeiro rosto que vi era agradável e me olhava com uma doçura atenciosa. Na ambulancia, várias vezes repetiu a pergunta, se estava tudo bem e, claro, eu balbuciava que sim, mas a ficha ainda não caíra e eu ficava a maior parte do tempo sonolenta, confusa.
A ficha só foi cair dias depois quando eu já havia colocado o primeiro stent e, internada, esperava a recuperação para colocar outro stent 15 dias após o infarto. Após a saída de minhas visitas, comecei a sentir tamanha angústia, tão intensa, tão terrível, que não consegui reprimir um pranto convulsivo, o que fez com que a equipe de enfermagem me mandasse de volta para a UTI. A ficha caíra.
Ai, meus sais!
Nunca li tanta bula de remédio em minha vida. Nunca antes na história dos meus 50 anos, pensei com carinho ou mesmo dei graças aos céus por existirem. Cloridrato, propatilnitrato, salicilato, estatina, antiarritmico, antiplaquetário, xinafoato, propionato, antiácido. Estas substâncias têm mantido meu pobre e cicatrizado coração (e outros órgãos afetados colateralmente) funcionando, ainda que milhões de vezes (algumas delas paranoica, noutras comprovadamente não), ele tenha desembestado a bater num ritmo doido e irregular que faz lembrar Joe Morelo, o baterista do Dave Brubeck Quartet, em Take Five (sempre quis mencionar isto).
Retornei ao hospital várias vezes no decorrer de 2011 até somar 6 stents em diferentes artérias. O que quer dizer que já estou vivendo naquele futuro da sci fi, um futuro que chegou para mim em forma de molinhas, algumas de aço inoxidável, outras bioabsorvíveis. Lindas molinhas, caras molinhas (nos dois sentidos, financeiro e sentimental).
Estou, portanto, biônica e valiosa. E newvivinha da silva basilio.

Restou uma sensação de que não mereço a graça desse livramento. Como se o curso natural das coisas tivesse sido interrompido e eu tivesse infringido desígnios superiores. Uma espécie de vergonha de ter sido contemplada com mais essa chance enquanto que a tantas outras pessoas este recurso foi negado. Quer dizer então que muitas mortes podem ser evitadas desde que se esteja na hora e lugar certos? Convivo também com a sensação de que escapei mas que será por pouco tempo. A princípio isso me paralisou. Todo o tempo ficava observando meus batimentos, meu tipo de suor, se havia como que um bolo que não conseguia digerir, se a boca estava seca, se tinha cãimbra, se estava infartando novamente. Medo paralisante. Depressão. E o infarto me empurrou pra uma zona de autoproteção. Tento me proteger todo o tempo de qualquer coisa que me faça sofrer (como se fosse possível).

A primeira vez que cantei e dancei o reggae de Bob e a homenagem de Gilberto Gil, senti tamanha alegria como se tivesse sido libertada de toneladas de opressão. E senti mesmo as "positive vibrations".

Jah Love Protect Us!







Filme O Mestre da Música

Após a morte de Joachim Dallayrac, sua mulher diz:
"Agora eu gostaria que o tempo passasse depressa."












O melhor amigo do homem? ou A parenta

Para não ter as orelhas aumentadas muito antes da hora, vou omitir grau de parentesco e nome dos protagonistas rsss...

Um belo dia, uma de minhas parentas sai pra fazer compras e como de costume deixa pronto o almoço do marido e o do cachorro... um sobre o fogão, o outro dentro do forno. Chega o marido para almoçar e dar a comida do totozinho.
Bem mais tarde quando a parenta chega das compras, esbaforida, cansada, achando que cumpriu com sucesso suas tarefas do dia e é só colocar os pés para cima e ver a novela preferida, é recebida com uma senhora cara feia e a reclamação:
- Puxa vida, mulher, que comida foi essa que você fez hoje? tava ruim demais, não agüentei comer e dei pro cachorro!
Minha parenta levanta, vai até a cozinha e, surpresa! O prato feito pro marido, coberto com outro, está, bonitinho, dentro do forno...

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Andando em círculos





Sou uma estrada procurando só levar o povo pra cidade só
Se meu destino é ter um rumo só,
choro em meu pranto é pau, é pedra, é pó. (Sidney Miller)



Ah se eu fosse insustentavelmente leve.
Mas não. Estou sempre matutando. Vendo mensagens nas entrelinhas, nas imagens, nas muitas metáforas. Duvidando daquilo que apenas é.
Se leio em algum lugar: es-tra-das, penso em estradas gastas, em estradas nunca caminhadas, em caminhos a desbravar, descobrir.
Em caminhantes, andarilhos, romeiros, procissões.
Em encruzilhadas.
Imagino o que desejará o caminhante? sim, porque quem caminha vai a algum lugar, em busca de algo.
Vislumbro caminhos sem volta ou ainda sendo construídos, passo a passo.
Decolo numa visão aérea da paisagem que circunda a estrada. Vejo um rio, uma aldeia, montanhas, pedras, uma ponte. Sempre as pontes.
Planejo a bagagem a ser levada. A mala. Abarrotada de quê, meu Deus? de livros? ou fotos antigas dos entes queridos que serão emolduradas mais tarde? de prospectos de alguma agência turística? mapas? foices e facões?

Quando finalmente repouso, encaro a nunca simples realidade.
O caminho envelheceu, a estrada já está esburacada, a foto amarelou, o facão enferrujado. O caminhante coberto de poeira, carrega com esforço a mala já meio aberta por onde saem pedaços de panos, restos de planos.
E no horizonte relâmpagos cruzam o céu ameaçando desabar um temporal.

Tudo começou quando li em algum lugar a palavra: es-tra-das.

De livros e sinas

Extraordinário o relacionamento íntimo que tenho com livros e as histórias neles contidas.
Que magia percebo emanar destes objetos.
Que poder exercem sobre mim.
Com que encantamento me pego a olhar, tocar, preparando-me para o ato de desvendar o que pode estar por trás de sua capa, lombada.
É sempre uma experiência similar ao enamoramento.

Acabo de ganhar Walt Whitman, Folhas de Relva, uma edição de capa suave ao toque, bela, que menciona nos créditos, poeticamente, ter sido o livro "impresso na primavera de 2006."

Sinto uma estranha sensação, a de que devo lhe pedir desculpas por ter que fazê-lo esperar um pouco. Ainda não terminei de reler Caminho da Liberdade, de Howard Fast. Porque sei que me esperam emoções muito fortes, de grande tristeza, indignação e revolta, nas últimas páginas deste relato dos anos seguintes à Guerra de Secessão americana, suas conseqüências na vida dos escravos libertos, a organização e fortalecimento da Klu Klux Klan, o conseqüente desmoronamento de um sonho que aqueles homens, mulheres e crianças estiveram vivendo, finalmente adquirindo direitos humanos, tais como os de estudar, comprar terras, comercializar o produto de seu trabalho livre, em igualdade de condições com os brancos. Haviam conseguido também o direito de ter representantes na Convenção onde leis iriam ser criadas ou modificadas para que fosse possível a reconstrução dos estados sulistas após a Secessão. Assim Gideon Jackson foi escolhido para ser representante dos negros e teve que viajar para a Carolina do Sul. Tudo envolvido em uma aura de sonho, mistério.
Sonho brutalmente interrompido por aqueles que acharam o bolo muito pequeno para ser dividido.
Estas últimas páginas me emocionaram muito a cada vez que reli este livro.

Talvez eu esteja ainda mais sensível (coisas da idade), mas percebo que, desta vez, sentirei mais profundamente o sofrimento que lerei nas palavras que descrevem a luta daquela comunidade ao perder, um a um, seus membros e entes queridos, alguns ignorando o motivo de tamanho ódio, surpresos com quanta brutalidade pode ser capaz um único ser humano, atônitos com a hipocrisia de uma sociedade dita cristã, que fechou os mesmos olhos que, ao entrar numa igreja, dirigem à imagem do Cristo ao fazer o sinal da cruz.

Assim vou adiando o momento de retomar a leitura, espantada comigo mesma, afinal, posso simplesmente desistir do livro, posso me convencer de que não passa de ficção, posso colocá-lo por baixo na pilha-dos-que-esperam-sua-vez-de-serem-lidos, posso primeiro ler Walt Whitman, já que o queria tanto e acabo de ganhá-lo...

Mas não. Vou cumprir minha sina!


Filme: A Última Ceia

O filme A Última Ceia é frio, cortante, amargo, direto. Como a miséria, como o ódio racial, como o remorso. Três gerações de guardas prisionais morando juntos. Um presidiário negro será executado em algumas horas. Seu último pedido, desenhar. Este tem um filho que também desenha, aparentemente sua única forma de expressão. No restante do tempo, sofre pressão da mãe que não o aceita como é, gordo, mudo, devorando obcecadamente todas as guloseimas da casa. Mas o que na verdade ela não aceita, é a vida que está levando, à procura de emprego, às portas de ser despejada do lugar pobre em que mora, às vésperas de se tornar viúva, obrigada finalmente a andar a pé, pois o carro também morre. Os guardas Hank e Sonny encaminham o preso para a cadeira elétrica. O jovem Sonny fraqueja e apanha do pai, Hank, na frente de outros guardas que tentam impedir a surra. Um deles é negro e Hank exige que tire suas “mãos sujas” de cima dele. Em casa, Sonny desfere ao pai uma única pergunta: “Você me odeia?” ouve a afirmativa de Hank e responde: “Eu, ao contrário, sempre o amei” e se mata com um tiro. Hank e seu pai o enterram no quintal ao lado de suas duas mulheres. Logo a seguir, Hank pede demissão e compra um posto de gasolina. Passa a frequentar a lanchonete em que a viúva do negro executado está trabalhando. Dá carona para ela. E socorre a ela e ao filho, logo após ter sido atropelado na autoestrada. O menino morre e ela se desespera com a perda dele porque é como se perdesse sua última tábua de salvação, aquilo que ainda a mantém indo em frente. É quando um romance inicia-se entre os dois. Tórrido. Desesperado. Algo como uma chance de ainda terem algo próximo do amor. Eles se precisam. Cada um por seus motivos. Remorso, sobrevivência. O homem dá o nome dela, Letícia, ao posto recém-comprado e dá a ela o carro que fora do filho. Em troca ela lhe compra um chapéu e vai a casa dele com a caixa do presente que é avaliado pelo pai dele que percebe o que está acontecendo e diz a ela que Hank segue as tradições, porque “homem só sabe bem o que é uma mulher quando transa com uma negra”. Ela não precisa dizer mais do que “Conheci teu pai” para que Hank leve o velho para uma casa de repouso, porque “ali tratarão bem” dele. Assim, sem titubear. Faz o que julga ser preciso para alcançar a nova vida ao lado dela. Pinta e enfeita a casa, recoloca os móveis nos seus lugares e busca a mulher. Diz-lhe que quer cuidar dela ao que ela lhe responde “Isto é bom, porque eu preciso de alguém que cuide de mim.” Enquanto ele sai pra comprar um sorvete pros dois, ela anda pela casa e encontra fotos de Sonny e os desenhos que seu marido fizera dos guardas prisionais antes de sua execução. Entende tudo. Quem é aquele homem, o que ele está tentando fazer e o que ela mesma está fazendo ao lado do executor de seu marido? Se debate, chora, revolta-se contra a vida que lhe prega mais esta peça. Quando Hank volta com o sorvete, automaticamente aceita que lhe dê colheradas na boca, olha do rosto dele para o céu, depois para os três túmulos existentes no quintal, de novo praquele homem sentado ao lado dela, compartilhando um sorvete, aparentemente é tão simples, um homem e uma mulher sentados na porta de sua casa à noite, tomando sorvete. Será que suas trágicas histórias particulares serão regeneradas através daquela união?

Livro: A praga escarlate, Jack London

Minha amiga Marcia gostou muito de A praga escarlate ou d'A morte vermelha, simplificando, como diria o menino Hoo-Hoo. Afinal pra que falar palavras difíceis como iguaria, como escarlate? O que interessa é que o caranguejo alimenta, que a doença torna vermelhos aqueles contaminados por ela.
London escreveu este pequeno livro em 1912 e projetou para 2013 a dizimação da raça humana. A história é contada por um velho que sobreviveu à catástrofe. Ele viu a máscara frágil com que nos fantasiamos de civilizados cair e os homens se tornarem selvagens, usando de meios bárbaros para se manterem vivos.
O velho viaja em companhia de meninos e vai-lhes narrando a epopeia da raça humana, como a conheceu até o momento em que a praga surgiu. Lhes fala dos livros que escondera numa caverna. Não esconde deles que existiu algo chamado pólvora e que mais dia menos dia voltarão a fabricá-la. E ouve de um dos meninos que quando ele tiver descoberto como fazer a pólvora, os outros vão se submeter a ele.
O avô não tem ilusões, ele sabe que o futuro será sempre igual: a uma tragédia se segue sempre o recomeço da civilização que comete os mesmos erros, pagando o mesmo preço pelo progresso: sua destruição.

Cedinho



Sair cedinho de casa e, já na rua, perceber a movimentação na vizinhança, as luzes dos quartos acesas. Ali, o cheiro de café sendo passado; aqui, o ruído de chuveiro elétrico; na casa seguinte, algumas instruções sendo dadas aos que ficarão em casa.
Passam por mim mães com crianças no colo, indo pra escola, ainda dormindo e eu imagino que trabalho deram para serem vestidas, assim, molinhas de sono. Vejo o carro do vizinho saindo da garagem de marcha-a-ré, soltando fumaça e a despedida da esposa enquanto fecha o portão, segurando o robe na altura do seio porque não fecha direito.
Me dá bom dia um vizinho que vai apressado, carregando a bolsa de ferramentas e a marmita. Bom dia! Escuto um ruído e volto para olhar uma bicicleta rangendo ao peso do pedreiro que também vai para seu trabalho, ali mesmo na vizinhança. Vou andando e ouço os latidos de cachorros inconformados em ficar sozinhos, cachorros que choramingam enquanto seus donos saem pelos portões. Uma galinha está ciscando na grama em frente da casa e eu penso: será que fugiu enquanto o portão estava aberto e ninguém percebeu?
E o ponto de ônibus vai enchendo com a chegada das pessoas que vêm de todos os lados, saem de todas as ruas, travessas e caminhos que desembocam na estrada principal. Têm seu destino, sua rotina, sua direção. Cada uma vai tratar da vida, vai lutar por ela, vai matar o leão diário. Participo da procissão, me misturo aos outros e sou envolvida no burburinho especial de cada manhã.

Livro: O céu dos suicidas, Ricardo Lísias


André desistiu da dor.
Ricardo surta, mas transforma sua dor e sua loucura em arte, em livro, num livro-catarse pelo remorso, catarse pela impotencia frente a dor do amigo e frente a sua própria negligencia com o amigo que anunciava sua própria morte. E que não foi ouvido.
Por isso Ricardo grita.
André é surdo.
Ricardo grita e seu grito é uma tentativa de ser ouvido.
André se enforca.
André não vai para o céu.
Que Deus é esse que não permitiria que seu amigo gentil, generoso, seu amigo cavaleiro templário não fosse para o céu?
A solução é lhe dar um final de vida novo, com enterro cristão, com os participantes enumerando as qualidades do morto e o padre no cemitério rezando de novo.
Obrigado, Senhor.
Ricardo transforma toda saudade em uma coleção de memórias sobre o amigo.

“Uma coleção é como um amigo: é preciso saber tudo. Quem tem uma grande amizade sabe que, mesmo que estejamos longe dela, uma lembrança sempre retorna. Em uma viagem de trabalho, você deve estar preparado para, sem planejar, encontrar algo que interesse para a sua coleção. É como oferecer um presente a esse grande amigo.
Aqui está, André."

Não confio mais nas cigarras



Em tempos de conferências para discutir medidas visando diminuir as consequências de séculos de descaso com o planeta, cá do meu quintal fico observando as mudanças irreversíveis já ocorridas.

Ouço seguidamente as pererecas e nada de chuva. Canta a cigarra chamando tempo bom (o cigarra, melhor dizendo, porque é ele quem canta) e então acontece o contrário, desabam temporais.

Seria o caso de não confiar mais nas cigarras, nas pererecas?

Para onde voaram as joaninhas da minha infância, lindas em sua roupa de bolinhas? E os camaleões transparentes, dos quais morríamos de medo que despencassem do teto sobre nós quando estávamos deitados em nossas camas porque “grudavam” na pele?

Agora entram por minhas janelas insetos nunca vistos, nem por minha mãe. As mangueiras dão frutos que caem antes de amadurecerem, e já foi dito que as mangueiras da Mata Atlântica estão doentes.

Não, não dá mais tempo.

E como sempre aconteceu, uma geração será suplantada.

Somos espectadores e protagonistas do espetáculo desta seleção natural.

Já somos jurássicos.

Não gostamos do que assistimos porque somos aqueles que serão substituídos por uma geração que esteja mais preparada. A geração dos que respirarão um ar que para nós já está poluído; uma geração que suportará as absurdas temperaturas de que já percebemos o prenúncio; a geração que comerá uma comida quimicamente diferente no sabor, cor e textura, desta que estamos acostumados a comer.

Uma geração que nunca ouvirá cigarras ou pererecas nem verá camaleões e joaninhas.

E não sentirá a saudade que sinto deles.

Moça, a senhora pisca-pisca?

Mês de dezembro, calor, férias, véspera de natal, o Saara abarrotado de gente, com pressa, suada, com nem tanto dinheiro assim, que vai às compras de presentes mais baratos ou mercadoria pra revender.

Lojas cheias, vendedores zonzos com tanto pedido, tanta devolução, tanta escolha. Gente que negocia, pede desconto, este aqui vai, aquele não, que quer trocar produto.

— Mais alguma coisa, senhora?

Vendedor que sobe e desce escada, faz conta, embrulha.

— Próximo.

Dá pra confundir qualquer um, principalmente a parenta que tem um bazar e que nesta época fica ainda mais atarantada (ainda mais).

Chega pra uma coreana e pergunta:

— Moça, a senhora pisca-pisca?



Outra da parenta:



A família se reúne no dia de Natal para almoçarmos juntos em casa da irmã mais nova por uma série de conveniências: espaço, proximidade para a maioria de nós e todo mundo vai pras suas igrejas à noite.

A irmã do meio mora mais longe de nós e sempre que possível alguém vai até lá busca-la de carro. Uma gentileza que às vezes a constrange e ela tenta a todo o custo evitar.

Dia de Natal, todo mundo num entra e sai na casa da tia mais nova, a churrasqueira já preparada, mesa posta, últimos retoques na decoração da mesa.

— Quem vai buscar a tia? Liga pra ela pra saber se já pode ir.

— E aí, tia, vocês já estão prontos? A gente já pode sair daqui?

— Não, não vem, não, eu já estou no ponto do ônibus, a gente vai se desencontrar. Não vem, não.

— Como assim, tia? Como você está no ponto do ônibus se eu estou falando no seu telefone fixo?

— Hahahahahaha, ela se escangalha de tanto rir.


Nós a amamos por um monte de motivos e também por este, o de nos proporcionar histórias de família.

Livro: A Jangada de Pedra, José Saramago

É maravilhosa a leitura de A Jangada de Pedra.


O leitor se sente extremamente envolvido pela saga dos personagens que se sentem, cada um a seu modo, responsáveis pelo fenômeno de soltar-se do continente, a Península Ibérica. Afinal a jangada de pedra é como uma nau portuguesa em sua viagem de descobrimentos fantásticos.

Que vontade de adivinhar como Saramago conseguia inspiração para ligar tantos elos e de maneira tão espetacular, tanto na forma quanto no conteúdo. Como se dava a tal criação literária na alma deste homem? De onde surgiam ideias como intertextualizar Pessoa, Carlos Drummond, Camões; abordar fatos políticos (a entrada de Portugal e Espanha na Comunidade Econômica Europeia); trazer fatos misteriosos e mágicos para o enredo, como as revoadas de estorninhos sobre a cabeça de José Anaiço — que me lembram as revoadas de borboletas que antecediam as visitas de Mauricio Babilonia em Cem anos de solidão —, e a beleza poética duma mulher que traça um risco no chão com sua vara de negrilho (o olmo europeu homenageado por tantos poetas)? Isto sem falar do mote principal que dá nome ao livro e que é a releitura das grandes viagens marítimas, dos descobrimentos em que Portugal e Espanha tiveram papel fundamental?

Sem falar n'outro dos simbolismos do livro, a vara de negrilho que ao final, floresce. É Saramago fazendo referencia a episódios bíblicos, mais uma vez. Está registrado no livro do Velho Testamento, Números, capítulo 17, que a vara de Arão floresce milagrosamente porque as 12 varas não estavam plantadas em terra, estavam apenas colocadas dentro do Tabernáculo, juntas, cada uma representando uma das 12 tribos de Israel. Quando a vara de Arão floresce, é Deus elegendo para seu Sacerdote, um membro da tribo de Levi, respondendo com este milagre à rebelião do povo contra seus líderes Moisés e Arão.

A última frase de Jangada de Pedra:

"A vara de negrilho está verde, talvez floresça no ano que vem."

Além da vara de negrilho, floresceu também até junho de 2010 a criatividade fantástica de Saramago, em livros como este A Jangada de Pedra e em O Evangelho Segundo Jesus Cristo, A Viagem do Elefante, O Ano da Morte de Ricardo Reis, Ensaio Sobre a Cegueira, Ensaio Sobre a Lucidez, As Intermitencias da Morte, Caim e tantos outros.

A Literatura sentirá a ausencia deste português.