Fuja da luz

"E não tinha nada de mais, nada de mal, que meu coração tivesse se quebrado, de tão usado." Ressurreições/1, Galeano em O Livro dos Abraços.

Ao contrário do que é habitualmente esperado, minha experiencia com a morte não teve luzes fortes no fim do túnel, nem visões de mensageiros do paraíso, não flutuei acima do meu corpo, não ouvi vozes, enfim, nada do plano místico ou metafísico. E continuo com medo da morte. Admito também que uma das coisas de que mais sinto falta é da blusa que usava no dia e que alguém cortou rapidamente pra fazer a massagem cardíaca. A blusa novinha, comprada depois de muita hesitação, cortada assim, inutilizada. Saudade.
A primeira coisa de que lembro é que urrava, gemia, gritava enquanto retornava da parada cardíaca. Dei muito trabalho à equipe da UPA naquele 15 de março. Pode parecer grosseira a comparação, mas meus grunhidos pareceram os gritos de sofrimento de cada porco que se matava em casa, por meu avô e tios. (Nunca consegui chegar perto do local onde aquilo acontecia por causa dos gritos do animal pressentindo a morte.). Aquela equipe talvez se lembre da mulher que se debateu furiosamente como se não quisesse voltar daquele estado sereno que a breve morte lhe proporcionou. Saudade daquela paz também.
A segunda coisa de que lembro é de uma mão fria tocando meu braço, e uma voz dizendo: "dona Nilva, dona Nilva, está tudo bem agora, nós estamos aqui para levar a senhora para o HFAG, tudo bem?" Ante meu aparvalhamento, repetiu que era a Dra. X e que iam me levar para o hospital, que eu tivera um infarto, mas agora estava tudo bem. Lembro dos cabelos dela logo abaixo das orelhas, lisos e pretos. O primeiro rosto que vi era agradável e me olhava com uma doçura atenciosa. Na ambulancia, várias vezes repetiu a pergunta, se estava tudo bem e, claro, eu balbuciava que sim, mas a ficha ainda não caíra e eu ficava a maior parte do tempo sonolenta, confusa.
A ficha só foi cair dias depois quando eu já havia colocado o primeiro stent e, internada, esperava a recuperação para colocar outro stent 15 dias após o infarto. Após a saída de minhas visitas, comecei a sentir tamanha angústia, tão intensa, tão terrível, que não consegui reprimir um pranto convulsivo, o que fez com que a equipe de enfermagem me mandasse de volta para a UTI. A ficha caíra.
Ai, meus sais!
Nunca li tanta bula de remédio em minha vida. Nunca antes na história dos meus 50 anos, pensei com carinho ou mesmo dei graças aos céus por existirem. Cloridrato, propatilnitrato, salicilato, estatina, antiarritmico, antiplaquetário, xinafoato, propionato, antiácido. Estas substâncias têm mantido meu pobre e cicatrizado coração (e outros órgãos afetados colateralmente) funcionando, ainda que milhões de vezes (algumas delas paranoica, noutras comprovadamente não), ele tenha desembestado a bater num ritmo doido e irregular que faz lembrar Joe Morelo, o baterista do Dave Brubeck Quartet, em Take Five (sempre quis mencionar isto).
Retornei ao hospital várias vezes no decorrer de 2011 até somar 6 stents em diferentes artérias. O que quer dizer que já estou vivendo naquele futuro da sci fi, um futuro que chegou para mim em forma de molinhas, algumas de aço inoxidável, outras bioabsorvíveis. Lindas molinhas, caras molinhas (nos dois sentidos, financeiro e sentimental).
Estou, portanto, biônica e valiosa. E newvivinha da silva basilio.

Restou uma sensação de que não mereço a graça desse livramento. Como se o curso natural das coisas tivesse sido interrompido e eu tivesse infringido desígnios superiores. Uma espécie de vergonha de ter sido contemplada com mais essa chance enquanto que a tantas outras pessoas este recurso foi negado. Quer dizer então que muitas mortes podem ser evitadas desde que se esteja na hora e lugar certos? Convivo também com a sensação de que escapei mas que será por pouco tempo. A princípio isso me paralisou. Todo o tempo ficava observando meus batimentos, meu tipo de suor, se havia como que um bolo que não conseguia digerir, se a boca estava seca, se tinha cãimbra, se estava infartando novamente. Medo paralisante. Depressão. E o infarto me empurrou pra uma zona de autoproteção. Tento me proteger todo o tempo de qualquer coisa que me faça sofrer (como se fosse possível).

A primeira vez que cantei e dancei o reggae de Bob e a homenagem de Gilberto Gil, senti tamanha alegria como se tivesse sido libertada de toneladas de opressão. E senti mesmo as "positive vibrations".

Jah Love Protect Us!







2 comentários:

  1. Nilva querida...eu estava lendo este escrito seu e, vc sabe q gosto de ler seus escritos, deu vontade de brincar com vc,dizer q agora vc é um ser hibrido, um ser biotecnologico, o princípio do futuro evolutivo da humanidade quando ficaremos desumanos no sentido biologico da palavra..."Restou uma sensação de que não mereço a graça desse livramento" Cara, caríssima amiga: Deus ex machina´!!!! E,escolho entre outras interessantes noções que essa frase suscita,A noção de Deus ex machina q pode ser aplicada a uma revelação dentro de uma história vivida por um personagem, que envolva realizações pessoais complicadas, às vezes perigosas ou mundanas e, porventura, seqüência de eventos aparentemente não relacionados que conduzem ao ponto da história em que tudo é conectado por algum conceito profundo. Essa intervenção inesperada e oportuna visa a dar sentido à história no lugar de um evento mais concreto na trama.

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  2. Mas,vc pode escolher a opção q honra as origens dessa expressão DEUS EX MACHINA q é latina originada o grego "ἀπὸ μηχανῆς θεός" (apò mēchanḗs theós), significando"Deus surgido da máquina".(pode pensar no stent) e é utilizada para indicar uma solução inesperada, improvável e mirabolante para terminar uma obra de ficção ou drama.Tudo começou no teatro grego e refere-se a uma inesperada, artificial ou improvável personagem, ARTEFATO ou evento introduzido repentinamente em um trabalho de ficção ou drama para resolver uma situação ou desemaranhar uma trama. Este DISPOSITIVO é uma invenção grega poisnNo teatro grego havia muitas peças que terminavam com um deus sendo literalmente baixado por um guindaste(machina) até o local da encenação. Esse deus então amarrava todas as pontas soltas da história

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